“Porque não uma estrela [Michelin]? É um caminho que gostaria de traçar”
Leia a entrevista a Carla Sousa, chef no restaurante do Valverde Hotel, que foi destaque na “Palavra de Chef” da edição de maio.
Carla Nunes
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A base da sua cozinha é a portuguesa, “sempre”: pelo sabor, mas também pelas possibilidades. Na cozinha do Sítio, a chef Carla Sousa desenvolve pratos leves sem abdicar do sabor, sempre focados na satisfação do cliente. Em entrevista à Publituris Hotelaria, a chef revela as suas fontes de inspiração, os ingredientes que não podem faltar na cozinha e as ambições que lhe traçam o percurso.
De onde veio o gosto pela cozinha?
Venho de uma família cabo-verdiana, humilde e numerosa – sou a penúltima de cinco filhos. As refeições eram um dos momentos mais importantes, algo mesmo sagrado na família.
A minha mãe sempre cozinhou, [mas] aos fins de semana era o meu pai que ia para a cozinha, e arrasava: porque era o inovador, porque procurava durante a semana os sítios onde iria buscar [os melhores produtos].
Desde muito miúda arrastava um banquinho atrás dele para ver o que estava a fazer, sempre na expetativa do que faria no fim de semana. Depois era o cheiro maravilhoso, que nos puxava e chamava o interesse. [Quando era adolescente] ele dizia: “Esta rapariga das duas uma – ou nunca mais vai por os pés numa cozinha, ou vai ser uma excelente cozinheira!”
Então não foi uma novidade quando decidiu seguir cozinha.
Não, nada disso. Tomei a decisão numas férias de me inscrever na Escola de Hotelaria da Pontinha.
Depois do período de formação, por que cozinhas foi passando e como surgiu a oportunidade de liderar o Sítio?
Trabalhei na cervejeira Lusitana, no antigo Rock City e em hotéis como a Penha Longa e o Bairro Alto Hotel. Depois, estive na Fundação Champalimaund, no Darwin’s, até vir [para o Valverde]. Estive no Bairro Alto Hotel durante cinco anos e meio e adorei a experiência. Foi onde conheci o meu grande chef e mentor, o Henrique Sá Pessoa, que me inspirou muito na vertente criativa. Aprendemos a cozinhar, a executar e a deliciamo-nos com aquilo que o chef faz. Mas para mim, uma das melhores experiências foi poder desenvolver a parte criativa.
Depois de sair do Bairro Alto, encontrei a [atual diretora do hotel Valverde], que me perguntou se estaria interessada em trabalhar com eles. Aceitei sem saber o que era. Para mim, seria para cozinheira, mas quando me fez a proposta para ficar à frente da cozinha, nem hesitei.
Qual a importância da criatividade que adquiriu com Henrique Sá Pessoa?
Desenvolver um prato não é assim tão linear. Enquanto cozinheira, executo aquilo que já foi pensado por alguém e, muitas vezes, nem paramos para pensar como é que se chegou àquele prato. Quando o Henrique desenvolvia um prato explicava sempre como tinha chegado ali. A maneira como explicava e a paixão que transmitia levava-nos a pensar [sobre] o que fazia sentido e o que não fazia. [Mesmo em casa], em vez de fazer as coisas como já conhecia, passei a inovar e a experimentar. E partir daí, é um processo.
No fundo, quando assume a liderança do Sítio, tem que aliar a parte mais criativa à de execução.
Sem dúvida. Idealizamos um prato e, por mais complexo e técnico que possa ser, temos de ter em conta que vai ser confecionado diariamente. Tem que ser de fácil absorção, para se poder dar continuidade e ficar sempre assim. Depois, a nível de sabor, tudo tem que fazer sentido.
No início, foi um desafio assumir a cozinha do Sítio?
Foi, porque como o hotel tinha acabado de abrir, era algo novo para todos e não sabíamos muito bem o que ia acontecer. Era uma liderança quase diária, mas foi muito interessante.
E no fundo, iria ser a Carla a estabelecer qual seria o conceito do restaurante.
Para mim o maior desafio foi esse. Primeiro, conhecer bem o espaço, as pessoas que nos visitavam e o que pretendiam, e a partir daí, afirmar-me e afincar o conceito. A cozinha portuguesa para mim é a base, sempre: com muito sabor, simples e genuína. Gosto muito de poder proporcionar aos meus clientes o saborzinho de casa, que os faz lembrar a comidinha da avó ou da tia. Já houve vários feedbacks nesse sentido e, para mim, isso é o mais aliciante.
De onde vem o interesse pela cozinha portuguesa?
Principalmente, por causa do sabor. Temos pratos com história e tradição que foram pensados há muitos anos por causa do sabor, é muito característico. É muito bom quando um cliente se senta à mesa, olha para o prato e fica a pensar o que será, mas assim que começa a comer apercebe-se imediatamente o que está à sua frente. Acho que é um dos desafios hoje em dia: poder transportar o cliente [com o sabor da comida]. Pode ser o [prato] mais simples, têm é que ser muito bom.
Ou seja, não está a tentar inventar a roda, mas sim trazer recordações.
É o reinventar, digamos assim. E também apostar nas tendências e trazê-las para o gosto e preferências dos nossos clientes, como a leveza e as restrições. Hoje em dia há muitas pessoas que, por questões de saúde, não podem comer certas refeições ou ingredientes, e temos que conseguir fazer uma refeição igualmente equilibrada, que não perca o sabor. Atualmente, na minha carta, tenho pratos que se adequam a [todas] restrições, porque é muito comum, cada vez há mais e acho que é muito importante pensarmos nisso a nível nutricional.
Nota diferenças nas preferências gastronómicas dos clientes? Quais são as tendências?
Procuram refeições ligeiras, cada vez mais. Com sabor, sempre, mas mais leves. Tanto que optei por fazer uma troca, usando mais legumes em vez de batata. Ponho os molhos sempre à parte, dando a opção de colocar ou não. Nas sobremesas, as que têm menos adição de açúcar são as que mais vendem. É um indicador fortíssimo de que as pessoas pensam cada vez mais na saúde e nós também temos a obrigação de o fazer e acompanhar.
Que ingrediente não pode faltar na sua cozinha?
O alho, os coentros e os legumes. Onde me perco mais é a fazer coisas com legumes, porque tenho três filhos e sempre foi difícil introduzir estes produtos na alimentação. [Para além disso] os meus pais sempre tiveram horta e, por isso, sempre nos habituamos a ver e valorizar o que a terra nos dá.
Há algum prato que o seu pai fizesse que a influencie ainda hoje?
Havia sempre “aqueles pratos”. Lembro-me de um atum de escabeche com batata-doce que ele fazia. Desde que estou no Valeverde tenho atum na carta, por causa dessa memória de infância. Sempre me marcou e é uma coisa tão boa, saudável, leve, simples, saborosa e fácil de aproveitar. É um prato que nunca falha.
Desde a renovação do hotel, o que mudou? Alteraram a carta?
Com este segundo espaço temos um restaurante muito mais aberto, acolhedor e que diferencia. Após a remodelação, pensei logo que a carta tinha que acompanhar o espaço. A pessoa que se senta aqui tem que poder aproveitar tudo, desde a entrada à sobremesa. A carta de almoço é mais rápida, de comida caseira, porque a maior parte dos clientes são executivos que têm uma hora para almoçar. Ao jantar, a carta é mais trabalhada, técnica e elaborada, onde o cliente pode aproveitar tranquilamente o menu e sair satisfeito, sem estar muito cheio.
Que projetos tem para o futuro?
Uma vez que temos um espaço maior, melhor, e que o restaurante está popular e assente, quem sabe, porque não, uma estrela [Michelin]? Não pensava nisso [antes da renovação], porque era impossível. Como se costuma dizer, quanto maior o espaço, maiores os sonhos. É um caminho que gostaria de traçar.
Que conselhos deixa para a geração que está a começar agora e ambiciona ser chef? Principalmente para a geração feminina, onde ainda não há muita representação.
Não é fácil, não tem sido fácil, mas nada é impossível. Há uns 15, 20 anos atrás, o mundo da cozinha era muito machista, é um facto. Mas nunca me limitei por causa disso. Nunca tive receio porque aprendi com o meu pai. Segui o meu caminho, tracei-o, e acho que os jovens devem fazer o mesmo: se têm um sonho, devem segui-lo. Com trabalho, como qualquer pessoa. Sempre adorei ser cozinheira e a ambição de vir a ser chef aconteceu naturalmente. Tenho [um bocadinho a vertente] de líder – talvez por ser mãe – o que ajuda muito. Mas também acredito que os líderes se constroem, não têm que nascer natos. Com trabalho, tudo se consegue.