“Cresci num espaço em que a comida era algo muito sério”
A chef Fatmata Binta pertence à primeira geração do povo nómada Fulani e promove a sua cultura gastronómica através do projeto “Dine on a Mat”.
Carla Nunes
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Nascida e criada em Serra Leoa, com ascendência guineense, Fatmata Binta, ou apenas “Binta”, como prefere ser chamada, marcou presença na 18ª edição do Congresso dos Cozinheiros, em Oeiras. A conversa com a chef é fluída e faz-se entre risos enquanto esta recorda o seu caminho pelo mundo da culinária e os dois projetos a que se dedica atualmente: a Fulani Kicthen Foundation e o Dine on a Mate, onde “celebra a forma como os Fulani, nómadas e africanos comem em zonas rurais”, sentados num tapete. Este ano foi distinguida com o Basque Culinary World Prize 2022, considerado o óscar da culinária, e com o prémio The Best Chef Rising Star, em 2021. Em entrevista à Publituris Hotelaria, Binta dá a conhecer a cozinha desta comunidade e como pretende vocacionar a sua “visibilidade para um propósito”.
Nos últimos anos criou dois projetos. Qual a diferença entre ambos?
No “Dine on a Mat”, [trabalho] com a minha cozinha, onde celebramos a forma como os Fulani, os nómadas e africanos comem em zonas rurais. [Aqui] foco-me na utilização dos ingredientes, e a minha visão é partilhar comida influenciada pelo sabor da comida das mulheres Fulani em África. [Já o] “Fulani Kitchen Project” é mais focado no empoderamento das mulheres, na preservação cultural, na promoção de sustentabilidade e na carência de alimentos.
Como surgiu a ideia para a “Fulani Kicthen Foundation”?
A “Fulani Kitchen Foudation” começou quando estava a viajar por África em busca de inspiração para o meu projeto “Dine on a Mat”. Ao visitar as comunidades [Fulani], passar tempo com estas mulheres e aprender com elas, dei conta que enfrentam imensos problemas diariamente. Não me pareceu certo que elas passassem tanto tempo e energia a ensinar-me [sobre a cozinha destas comunidades] e ir-me embora sem prestar atenção aos seus problemas. Queria colaborar com elas de uma forma mais profunda. A ideia de criar um espaço seguro para estas mulheres, onde pudéssemos falar de assuntos que nos interessassem, mas também atacar estes assuntos, como o casamento precoce, o direito à terra, para que possam cultivar as próprias hortas, salários dignos enquanto agricultoras… A ideia nasceu a partir daí. Pretendo investir o dinheiro que recebi do Basque Culinary World Prize num espaço onde possam trabalhar em projetos de artesanato, cultivar fónio e encorajá-las a ensinar os métodos sustentáveis, vendendo os seus produtos internacionalmente com o dinheiro a ser reinvestido na comunidade.
Cresceu numa comunidade Fulani. Foi daí que cresceu o interesse em aprender mais com estas comunidades?
Nasci e cresci em Serra Leoa, mas enquanto Fulani, que viveu numa casa bastante tradicional, a minha família sempre me enviou de férias para aldeias. Passei todas as minhas férias em áreas rurais. O meu respeito pela comida, a comunidade e a cultura em si nasceu [devido a isso]. Teve uma enorme influência em mim enquanto chef.
Apesar de crescer nessa comunidade sentiu a necessidade de aprender mais.
Estava a tentar encontrar a minha identidade, também como chef. Ao estudar na Escola de Culinária e trabalhar na indústria, faltava-me qualquer coisa. Não via o tipo de comida com a qual tinha crescido e isso não me fazia sentido. Queria aprender mais sobre este tipo de comida para poder celebrá-la com o mundo. [Foi, em grande parte], uma descolonização e autoaprendizagem. [Uma vez que a comunidade Fulani] está espalhada por toda a África, tive de fazer pesquisa. E visto que visitava estas aldeias durante as férias, falo a língua fluentemente. No fundo, o meu passado realmente ajudou-me no meu futuro: na forma como usei a gastronomia, na minha filosofia enquanto chef, nos meus projetos de empoderamento feminino e construção de comunidades… veio tudo do meu passado.
Quando criou o “Dine on a Mat” em 2018, qual foi a aceitação deste projeto?
Foi lento, demorou um ano. Ao início ninguém se inscrevia, mas continuava a cozinhar e convidava os meus amigos, que é algo que gosto de fazer desde o primeiro dia. Uma vez, um grupo de 16 estudantes universitários estavam a visitar o Gana e uma amiga que tinha ligação com eles pediu-me para lhes cozinhar uma refeição gratuita. Cozinhei, convidei-os a minha casa, e eles gostaram tanto que quando estavam para se ir embora disseram “Não, temos que pagar, não podemos aceitar isto de graça”. Começámos a publicar fotos, as pessoas comentavam que era “fixe” comer sentado numa manta. Depois disso, um grupo de 50 estudantes de Gestão de Harvard, que também estava de visita ao Gana, fez uma reserva oficial.
Ainda se lembra do que cozinhou?
Sim. Maffe Tiga, que é uma sopa de manteiga de amendoim, com arroz… Uma refeição simples de três pratos. Na altura falava-lhes mais da comida, e não da cultura, porque ainda estava a fazer pesquisa. Agora, o conceito foca-se muito em educar, em falar sobre tradições culinárias, interagir com as pessoas, partilhar conhecimento.
Quando diz “Primeiro comemos, depois falamos”, é porque há algo na comida que conecta as pessoas? É diferente quando partilhamos uma refeição sentados no chão?
Absolutamente. Centra-nos. Quando nos sentamos no chão recentramo-nos, criamos espaço para a empatia. Lembro-me de um dos grupos que recebi de Harvard dizer: “Estamos a viajar juntos no mesmo autocarro há duas semanas e ainda não nos tínhamos conhecido verdadeiramente até nos sentarmos neste tapete”. E achei que isso era poderoso. Porque quando nos sentamos numa manta não temos de nos preocupar com etiqueta, comemos com as mãos. Relaxamos. Não há fingimentos.
Criar algo a partir do nada
Com que comida cresceu?
Maioritariamente grãos, como fónio, arroz com guisados, grande parte com folhas de batata-doce, miudezas, milho, alguns vegetais secos e raízes secas de vegetais. A comida foi escassa durante dois anos. Experienciámos uma guerra civil muito violenta em Serra Leoa, pelo que tivemos de nos mudar para a Guiné. Mudámo-nos com imensos familiares para uma aldeia com capacidade para cerca de 100 pessoas. Éramos à volta de 500, portanto, foi difícil. A fome marcou grande parte [desse período], comíamos muito fónio, porque era fácil de obter e rápido de colher. Antes de fugirmos, os vizinhos deram-nos uma mão cheia de ingredientes e tivemos de nos reunir. Todos contribuíam com o que tinham para criarmos algo, para sobrevivermos. Isso foi uma grande lição: pegar numa mão cheia de ingredientes e criar algo a partir do nada. [Por exemplo], o único arroz disponível estava cheio de baratas, tínhamos de escolher grão a grão e lavá-lo. Nunca era baseado no “Vamos seguir a receita” [risos]. Era baseado no que estava disponível.
Essa mentalidade ficou consigo?
Sim. Na maioria das vezes consigo criar uma ementa na minha cabeça e cozinhá-la no dia do evento. E sai bem [risos]! É instinto, já sei que isto fica bem com aquilo. Deu-me confiança para saber os ingredientes que podem resultar juntos. Não é uma ciência: ponham apenas amor na comida que fazem. E se tivermos os melhores ingredientes, podemos criar a melhor comida. A comida não precisa de ser complicada para saber bem.
Estudou Ciências Internacionais. Porque decidiu mudar para cozinha?
Paixão. Sempre adorei cozinha. Cresci num espaço em que ambas as minhas avós eram cozinheiras e tínhamos um restaurante. Estava habituada a carregar comida na cabeça para os mercados semanais. Nas mulheres da minha família, da minha comunidade, a comida era uma forma de se celebrarem a elas próprias. Podia ser em funerais, casamentos… cozinhar era um entretenimento, era a única coisa que faziam. Não podiam ir à escola, os casamentos eram muito precoces, portanto, a única responsabilidade era cuidar do lar, e faziam-no através da comida. [As mulheres desta comunidade] têm uma rotina. Vão ao mercado, voltam e garantem que há comida na mesa. Cresci num espaço em que a comida era algo muito sério.
Como é que os seus pais reagiram à decisão?
A minha mãe não gostou. Costumava ligar-me de vez em quando, do nada, para me perguntar se tinha a certeza que queria ser chef. Só começou a ficar orgulhosa quando apareci na capa de uma revista. Mostrou-a a toda a gente que conhecia [risos].
Atualmente a sustentabilidade está na agenda de vários setores, nomeadamente dos chefs. Como encara este movimento?
A sustentabilidade não é nada de especial na minha cultura. Sinto que é mais um chavão. Na minha cultura não é um chavão, é a norma. E sinto que deveria ser a norma, o nosso estilo de vida, e não algo que deveria ser glorificado como se estivéssemos a fazer algo de especial. É sobre ser responsável.
Já trabalhou em cozinhas de hotel. Porque decidiu sair?
O espírito nómada chamou mais alto. Fiquei cansada. Nómadas… Não podemos ficar num sítio por muito tempo [risos]. Queria mais, queria compreender melhor a minha cozinha. Então tive de assumir o risco de despedir-me do meu emprego estável e encontrar o meu espaço no mundo culinário.
Já recebeu dois prémios culinários. O que significam para si?
Neste momento quero usar toda a visibilidade que tenho e vocacioná-la para um propósito. Significa muito ser-se reconhecido pela indústria, significa que se está a trabalhar muito e que as pessoas estão a ver esse trabalho. Mas tudo o que faço deve ser sobre mudança e propósito. Espero que estas plataformas em que estou e os prémios que estou a ganhar sejam para impactar e causar mudanças na minha comunidade. Quero inspirar a próxima geração, e isso preenche-me. Cozinhar já não é suficiente, é cansativo. Na maior parte das vezes não estás com as pessoas que te amam. Estás sempre longe da família, sempre cansado. Sacrificamos tanto enquanto chefs…. Para mim, ao continuar em frente, quero que esse sacrifício signifique algo. Não quero estar exausta sem razão. Quero sentir-me realizada e retribuir à comunidade.
Que planos tem para o futuro?
Ainda me estou a descobrir. Todos os dias dou conta que tenho novos interesses. Por enquanto, será fundar um centro, colaborar com muitas mulheres de zonas rurais e continuar a partilhar a minha experiência gastronómica no mundo. Para além do meu projeto da fundação, no próximo ano quero cozinhar mais e em cidades diferentes. Há três meses disse à minha madrinha que queria colaborar com o projeto Dine on a Mat em galerias e museus à volta do mundo, e assim que o disse começaram a contactar-me [risos]. Em novembro vou estar no Museu da Civilização, em Roma, e tenho um outro museu que acabou de me contactar, em Berlim. Quero muito fazer instalações culinárias à volta do mundo, em museus, com utensílios culinários africanos.