“A busca da identidade de um cozinheiro é algo que pode nunca terminar”
“Donos” dos destinos da cozinha do Hotel Casa Palmela, Mauro Álison faz questão de utilizar os produtos que provêm da horta local. As criações, essas, diz o chef, podem levar tempo, até porque as experiências fazem parte do dia-a-dia do restaurante Zimbral.
Victor Jorge
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Texto: Victor Jorge | Fotogarfia: DR
Entrou no universo da cozinha “tarde”, mas reconhece que uma vez descoberto o gosto, “sabia o que queria”. Da Polícia Judiciária, enquanto investigador criminal, até à cozinha do restaurante Zimbral, do Hotel Casa Palmela, o chef Mauro Álison diz-se “cozinheiro”. O ser chef “é a consequência do meu trabalho”.
Como surge a ligação do chef Mauro Álison ao Hotel Casa Palmela e ao restaurante Zimbral?
A minha ligação a esta casa começa com o Ivo Garra, que saiu há pouco tempo e que me trouxe de Montargil onde era subchefe de cozinha. Entretanto, na altura da pandemia, havia uns problemas na Casa Palmela e vim para cá fazer extras. Trouxe o meu colega, que hoje é meu subchefe, que já foi meu chefe e que considero meu professor. Entretanto, saí, e vim depois substituir o chef Sérgio Morais e assumi a chefia e comecei a dar mais expressão àquilo que são as minhas criações.
Além disso, tudo o que se vê aqui, esta paz, esta natureza fascina-me, apesar de lá dentro, na cozinha a calma não ser a mesma. Mas poder olhar pela janela e ver esta paisagem é, sem dúvida, um privilégio.
Quando cheguei tínhamos uma horta que não estava a ser explorada e fiz questão de a desenvolver. Penso que é muito importante e tendo possibilidade de ter produto, de plantar, semear, colher, faz toda a diferença. E temos aqui muitos produtos, desde tomate, pimentos, alho francês, hortelã, hortelã da ribeira, poejo, enfim, tudo o que faz falta numa cozinha existe aqui.
E todos esses produtos são utilizados na sua cozinha?
Sim, todos. Infelizmente não consigo só utilizar os produtos que produzimos, mas tudo aquilo que produzimos, faço questão de utilizar. E a ideia é que se possa expandir esta produção própria.
E há quantos anos é que trabalha na cozinha?
Há nove.
E como é que a sua cozinha evoluiu?
Acho que evoluiu bastante. Sempre gostei de cozinhar.
De onde vem esse gosto?
Vem de casa, da minha mãe, tias, avós. Tenho um tio que foi chef durante 30 anos, e quando era mais novo andava pela cozinha. A primeira vez que lá entrei fiquei assim um bocado “wow”. Só anos mais tarde, depois de começar a cozinhar, é que percebi que aquilo teve algum impacto em mim.
Mais tarde fui tirar o curso de cozinha na Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal para me dar outra amplitude e outras bases. Fui crescendo naturalmente dentro da cozinha, porque acredito que só trabalhando e querendo muito é que conseguimos. Eu entro na cozinha relativamente tarde, com 20 e muitos anos.
Isso é tarde?
Não é tarde, já que se pode entrar a qualquer altura, mas quanto mais tarde, mais difícil as coisas se tornam.
Mas o meu grande objetivo, não era ser chef, mas sim cozinheiro e ser todos os dias melhor que no dia anterior. Costumo dizer que sou cozinheiro. O ser chef é a consequência do meu trabalho.
Ser chef é, basicamente, mandar na cozinha?
Sim, mas felizmente faço questão de cozinhar.
Mas consegue definir o seu estilo ou conceito?
É simples. Boa comida. Acredito que se temos capacidade de nos expressar, devemos aproveitar essa capacidade, não desrespeitando aquilo que foi feito.
Essa expressão vem muito de experiências, de combinações, de vários sabores e odores do mundo.
Faço experiências e tenho uma coisa boa que me ajudou bastante a conseguir melhorar todos os dias, que é viver as coisas com intensidade. Isso não significa que se tenha de trabalhar 16 ou 20 horas, mas sim, no tempo que lá estamos, estarmos focados e concentrados e tentarmos perceber o que estamos a fazer e tudo aquilo que se passa à nossa volta. Aí percebemos os cheiros, os sabores, as texturas. Tudo isso torna mais fácil combinar tudo.
Costumo dizer que tenho memória daquilo que provei e aquilo que vai resultar.
Mas é esse experimentalismo que procura?
Sim, bastante. Eu gosto desse desafio, porque acredito que devemos explorar tudo aquilo que está à nossa volta. Para além da horta, temos uma biodiversidade incrível neste local. Nós temos amoras, loureiro, funcho selvagem. As ervas aromáticas que apanho aqui nascem naturalmente. E então, claro, isso acaba por me “obrigar” a usá-las e fazer experiências. Há pessoas que gostam, eventualmente, seguir uma linha mais tradicional e conservadora, mais certa, mais segura.
Evolução e transformação
Mas a cozinha nestes nove anos que tem de experiência evoluiu muito?
Evoluiu e transformou-se. Acredito que, quando comecei, havia demasiadas balizas. Hoje em dia já não há tantas. Há mais pessoas a fazerem coisas diferentes e a não terem medo de arriscar. Isso tem a ver com respeito e conhecimento, não podemos andar todos a fazer as mesmas coisas e não temos todos de gostar do mesmo.
Acho que o facto de haver cada vez mais mulheres na cozinha, é uma evolução e melhora muito as criações. Além disso, haver gente jovem na cozinha, com conhecimento, também é uma evolução.
E que resposta tem tido dos que provam as suas criações?
O feedback tem sido extremamente positivo e isso deixa-me super satisfeito. Porque, afinal, é para isso que trabalhamos, não é? Há coisas na carta para as quais as pessoas olham e são diferentes ou são estranhas e, talvez, até têm receio. E depois ao provarem ficam surpreendidas. Isso para mim é que tem valor, porque apesar de não ter essas balizas, não ter medo de arriscar e fazer combinações que não são, talvez, muito habituais, é preciso que as pessoas provem. Se as pessoas não provarem, nunca irão saber se é bom.
Muitas vezes as pessoas precisam também de ser incentivadas a provar coisas diferentes. Inúmeras vezes vou à sala e as pessoas falam comigo sobre o efeito surpresa que tiveram com algum dos meus pratos. É isso que pretendo criar a cada garfada ou cada prato que é criado, que consiga impactar as pessoas.
De quanto em quanto tempo renova a carta?
Neste momento estamos a fazê-lo de seis em seis meses. Trabalho muito consoante aquilo que que tenho disponível na horta. Então há um certo tipo de legumes que altero, ou seja, o prato mantém-se o mesmo, mas vai ter um legume diferente.
Portanto, é uma evolução, uma adaptação. Não é algo novo?
Sim, exatamente. Mas, claro, que há sempre novidades.
E quanto tempo precisa para estruturar essa carta?
Pergunta difícil. Há coisas que surgem num ápice. É aquela ideia que sei que vai dar certo, outras podem levar meses. Há vezes que estou a lançar uma carta e a pensar já na próxima, porque percebi que ao fazer testes para aquilo que vai entrar agora, descobri alguma coisa que é espetacular para o próximo verão.
E aí vêm as experiências, vamos fazendo os testes que temos de fazer para que depois, quando a carta é lançada, a coisa esteja perfeita.
E por que caminhos é que o Mauro acha que irá enveredar no futuro? A cozinha é sempre uma evolução, uma experiência, adaptações, evoluções.
Não sei se será muito diferente do caminho que estou a traçar agora. Porque lá está, aquilo que faço é uma miscelânea ou engloba muita coisa. Uso produtos asiáticos, produtos africanos, as especiarias do Médio Oriente, os produtos portugueses. Acho que a busca da identidade de um cozinheiro é algo que pode nunca terminar.
Qual foi o produto português que o mais surpreendeu até agora?
Tenho alguns. Até há bem pouco tempo não gostava de nabo.
Não gostava ou não utilizava?
Não gostava. Não gostava de favas, por exemplo. Esses desafios que abraço é que me dão gozo. Acho que, enquanto cozinheiros, temos de perceber o que não gostamos, mas mesmo assim se é bom temos de usar. Acho que isso é fundamental.
E algo que não entra na sua cozinha?
Caldos artificiais. Percebo e respeito, mas não uso. A realidade é aquilo foi feito para ser bom, não podemos negar. Mas não entram.
E aventuras no exterior? Já houve ou poderão vir a existir?
Enquanto cozinheiro nunca estive lá fora. Já trabalhei fora de Portugal, mas não a exercer a cozinha. Andei na faculdade, a estudar psicologia criminal, porque queria ir para a Polícia Judiciária e houve uma altura em que só tive cadeiras teóricas para fazer. Então decidi ir para França. Vivi lá durante seis meses. Foi uma experiência, mas nunca a trabalhar em cozinha. Só mesmo em Portugal.
É uma grande mudança. Houve mais alguns sonhos?
O primeiro sonho era ser jogador de basquete da NBA. Ok, pronto, caiu por terra. Depois vem a Polícia Judiciária. Depois percebi que era a cozinha.
Eu cozinho desde muito novo. Lembro-me de pedir à minha mãe para me deixar cozinhar e ela dizer que não, porque não tinha idade. Mas fui insistindo. Com sete anos lembro-me de pedir à minha avó para mexer na cozinha quando ela estava a fazer as coisas. Na família sempre foi difícil, porque são excelentes cozinheiros, algumas cozinheiras, até profissionais.
Até que começaram a dizer-me para fazer o lanche e a família provar e dizer que devia de ir para cozinheiro. Mas eu achava que não. Até que houve uma altura em que disse, é isto. Não vale a pena estar a negar, porque eu tenho jeito para a coisa.
Alguma vez ambicionou ter o seu próprio restaurante?
Sim, sem dúvida. Não sei quando, mas acredito que vá acontecer mais cedo ou mais tarde. É preciso uma grande estrutura, porque já tive alguns convites para fazer sociedade.
Também já tive convite para ir trabalhar para fora, não para fazer sociedade, mas para ir trabalhar para fora. Mas vou tentar traçar o meu caminho por aqui. Muitos dos grandes chefs portugueses estiveram fora, trabalharam com grandes chefs de internacional. Eu não tenho esse know-how. Então estou a fazer o meu caminho. Rodei-me de pessoas que gostam e que pensam da mesma forma que eu, partilham a mesma filosofia.
As estrelas da cozinha
Mas a cozinha portuguesa tem dado grandes passos em direção ao reconhecimento internacional?
Sim, sem dúvida. E não faz sentido que seja de outra forma, porque temos uma gastronomia formidável. Há bocado perguntou-me sobre o impacto que a minha cozinha tem nos clientes. Tenho clientes que, quando vou à sala, me perguntam porque o restaurante não tem uma estrela Michelin. E eu fico a pensar, já que alguns estão habituados a frequentar este tipo de sítios.
Agora, em termos de reconhecimento, acho que não há volta a dar, porque temos muito talento em Portugal, temos uma gastronomia riquíssima.
E tem-se afirmado pelos valores portugueses com produtos portugueses ou tem sido uma mescla cada vez mais internacional?
Tem-se afirmado por contar história e isso é muito importante.