“A arte de receber, como se estivéssemos a receber em nossas casas, fascina-me”
Em entrevista à Publituris Hotelaria para a rubrica “Palavra de Chef”, Vera Silva frisa a importância do trabalho de equipa na cozinha e da necessidade de estarem todos “alinhados, como uma orquestra”.
Carla Nunes
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Desde 2017 que Vera Silva lidera a cozinha do Ânfora, no NAU Palácio do Governador, em Lisboa. O percurso, trilhado pelos restaurantes de várias unidades hoteleiras, foi ditado pelo fascínio na arte de receber, bem como pelas possibilidades de explorar vários momentos – do pequeno-almoço ao jantar, passando pelos eventos corporate.
Em entrevista à Publituris Hotelaria, a chef frisa a importância do trabalho de equipa em cozinha e da necessidade de estarem todos “alinhados, como uma orquestra”.
Porque decidiu seguir esta área?
A minha primeira opção foi jornalismo, [mas] tinha alguma dificuldade em línguas, porque tenho dislexia. Acabei por ir para uma área mais prática e segui cozinha. Comecei sem curso, em Setúbal, num hotel. É um amor que se vai alimentando daquilo que vamos descobrindo, porque a cozinha tem um bocadinho o lado de química. Era jovem e, aos bocadinhos, fui-me apaixonando por isso.
Portanto, a prática veio antes da formação.
A minha formação é sempre na prática, com os chefs e cozinheiros que estavam na área. Só depois é que pensei que deveria ter alguns apontamentos, cursos pequenos, que me pudessem ajudar.
[Tirei alguns cursos] sobre carnes, peixe, alguns dietéticos. Hoje em dia também temos que estar virados para esta parte da alimentação saudável. [Tirei ainda um curso] de gestão, porque quanto mais vamos crescendo, mais temos que perceber a forma de gerir a cozinha.
Quais foram as principais referências ao longo do percurso?
Acho injusto dar esse destaque, porque todos nos influenciam de alguma forma: uns a cozinhar, outros na forma de estar dentro da cozinha, na organização, na gestão… Não posso dar esse destaque a um só, tenho que dar a todos. A cozinha é a partilha e eu costumo dizer que partilhar é amar. A grande influência, se calhar, veio de casa. Queria ser jornalista e de repente olho e percebo que sempre tive ali a cozinha e não me apercebia: a minha avó, por exemplo, era forneira no Alentejo.
Passou pelas cozinhas da Estalagem do Sado, Sana Lisboa e Restaurante Vintage. Podemos dizer que tem preferência pelo serviço da cozinha de hotel?
Sem dúvida. Porque é muito mais completo, desafiante. Toda esta arte de receber, como se estivéssemos a receber em nossas casas, fascina-me. Desde o pequeno-almoço até ao jantar, ter momentos diferentes dentro de um hotel fascina-me. A parte corporate também me desafia, porque um evento para um grupo não vai ser igual para outro. Dentro de um hotel há muito mais: há o room service, o bar… Num só espaço temos muita coisa para explorar.
[Também] podemos fazer parte da história de alguém, como num casamento ou batizado. Podemos não saber quem foi o chef, mas sabemos o local em que foi e nós fazemos parte. Não significa que tenha que ter lá o meu nome, mas faço parte daquela história porque fui eu que cozinhei para aquele dia e eles quando falarem vão falar do Palácio do Governador, da comida… Seja ela boa ou má, pode ser dos dois lados!
Que tipo de cozinha trabalha no Palácio do Governador?
Um bocadinho de tudo: a internacional, a portuguesa… Adoro a nossa cozinha, é a minha paixão, mas quando se está inserido num hotel, em que a ideia é receber, temos que receber todos. Logo aí temos que abrir o leque, ter as opções quase todas, e é um bocadinho isso que faço: se fosse francês, italiano, português, o que iria reconhecer na minha carta? Tentar ter um bocadinho de tudo, a nível de produto.
Quais os principais pontos a ter em conta na criação de uma carta?
Gostava de dizer que não temos limitações, que era pensar e criar, mas não. Temos que pensar na equipa que temos, quais são as dificuldades e onde dominam mais. Por exemplo, os produtos sazonais seriam o perfeito hoje em dia para a sustentabilidade, que é tão pedida também aos chefs, mas é difícil, porque para ser sustentável os nossos fornecedores têm que corresponder. Há uma cadeia que não é só nossa, dependemos uns dos outros. Temos que pensar no que nos vai chegar, no que conseguimos comprar, que hoje em dia está ainda mais difícil – e já não estamos a falar de preços, [mas] na dificuldade em receber a matéria-prima.
Têm tido problemas com os fornecedores?
Não acho que seja um problema, é uma dificuldade de ambas as partes. Eles não têm contentamento nenhum em não ter produto. O que tentamos fazer é contornar: se não temos este produto, o que podemos oferecer ao cliente para que não sinta falta do mesmo? A ginástica é essa, pensar sempre no cliente, como o mimar e como podemos envolver este processo de maneira que exista a compreensão de todos, para que o cliente não sinta isso.
As exigências e preferências dos clientes mudaram?
Hoje em dia as pessoas preocupam-se mais com a sustentabilidade, comer saudável… [Mas] o nosso cliente é sempre exigente, não sinto que tenha mudado.
O que não pode faltar na sua cozinha?
Coentros. Ervas aromáticas. Adoro tomilho-limão, por exemplo.
Após cinco anos no Ânfora, como se mantém atualizada?
Esse é o desafio da equipa. A equipa é que puxa por nós, está sempre a querer mais. É estudar, ler, partilhar com colegas dentro da área. É não estar à espera de que as coisas venham ter connosco, mas procurá-las. Procurar conhecimento, comprar livros, pesquisar. O meu marido também é cozinheiro, portanto, é muito fácil falar-se de cozinha em casa.
Fala muito da equipa e das pessoas que tem na cozinha…
Sou só uma cara. Só represento toda uma equipa e o trabalho que faz diariamente. O trabalho é de todos, cada um com a sua função. Por isso é que existe o cozinheiro de segunda, de terceira, de primeira, o copeiro. A magia é essa. Só acontece se todos estivermos alinhados, é como uma orquestra. Está lá o maestro, mas para se ouvir, todos têm que tocar.
Que papel tem um chef no que toca à formação de equipas?
O chef é o formador. Hoje em dia há muita dificuldade em encontrar profissionais de cozinha que queiram ficar na paixão, porque é uma área que exige muito de nós. Quando os cozinheiros saem da escola de hotelaria, ou não, temos que olhar para a pessoa, perceber se tem potencial, acreditar nela e ensinar todos os dias. A formação não acaba na escola. Eu ainda aprendo com os mestres de cozinha. Se for para uma cozinha com chefs Michelin, estou lá para aprender! A função de um líder é essa, está sempre a ensinar.
Qual o principal desafio que os chefs enfrentam atualmente?
Hoje em dia há falta de pessoas na nossa área, de cozinheiros. É muito difícil neste momento corresponder às expetativas do nosso cliente. Como digo, tentamos todos os dias dar o nosso melhor, e é esse o objetivo, trabalhar para uma cozinha de excelência. Mas com muitas dificuldades, formação e paciência.
Como descreveria a representação feminina no mundo dos chefs de cozinha?
A representação é pequenina, [mas] já há algumas mulheres a aparecer. É engraçado que a cozinha de casa é nossa. Depois a alta cozinha, não sei porquê, é o homem que a representa. Acredito que aos poucos a mulher vai conseguir ganhar a sua garra e força dentro da cozinha. Ainda ontem [29 de junho] uma menina ganhou o prémio Chef de Cozinha do Ano. Fiquei muito contente, sem conhecer o trabalho. Achei interessante porque isso é uma das coisas que já digo há anos – às vezes [as mulheres] nem chegam às finalistas [no concurso].
Que conselho deixa para a próxima geração?
Que venham com garra, que acreditem tanto como eu. É difícil, mas é gratificante. A cozinha tira-nos muito tempo, mas também nos dá coisas muito boas.